Lex orandi, lex credendi
Muito esclarecedor este texto do Pastor adventista Isaac Malheiros e, por isso, resolvi reproduzu-lo aqui em meu blog.
Lex orandi, lex credendi
Música de culto é funcional, é para ser feita com propósitos que estejam de acordo com os propósitos do culto. O culto e seus propósitos moldam a música. Um antigo axioma litúrgico do cristianismo é “Lex orandi, Lex credendi”: a crença molda a oração, o que cremos é o que molda o culto, a teologia molda a liturgia. Assim, o culto, como expressão coletiva do que cremos, sujeita e normatiza a música, e não o contrário.
Esse axioma desfaz a noção de que o culto é um concerto, um evento onde podemos ter, ao mesmo tempo, comunhão com Deus e algum entretenimento cultural. Devemos ter entretenimento cultural como objetivo de alguns eventos cristãos. Não no culto. Em nossa teologia, culto é adoração a Deus, exposição da Palavra e comunhão uns com os outros, não uma reunião para apreciar música.
Creio que a maioria das pessoas concorda com isso. E no imaginário adventista, esse discurso está direcionado à música contemporânea, estranha, agitada, inadequada ao culto. Normalmente quando ouvimos alguém falar que “a igreja não é um teatro”, o público-alvo da repreensão são os grupos de jovens e suas bandas ruidosas. Ninguém pensa em nada mais.
Ninguém faz discursos assim pensando em oratórios em latim e alemão, cantatas intermináveis apresentadas anualmente em igrejas adventistas durante o culto, acompanhadas por orquestras municipais compostas por pessoas que mal sabem encontrar o livro do Gênesis na Bíblia.
Falta-nos uma certa coerência.
A minha conclusão é: o “erudito” perdoa uma multidão de pecados.
Se é erudito (ou se parece ser erudito), se foi composto por alguém que nasceu antes do século 19, é bem-vindo. Podemos até mesmo inverter: “Lex credendi, lex orandi”, e transformar o culto cristão numa missa incompreensível para boa parte da congregação sob o pretexto de apreciar boa música sacra.
Lex orandi, lex credendi: o culto não é um espetáculo musical, seja de música popular ou erudita. A igreja pode se reunir para apreciar música em outros momentos que não o culto.
Oferecer a Deus o melhor é oferecer a Deus música erudita ocidental
Todos concordam que o Senhor merece o melhor que podemos oferecer, e aplicamos esse princípio à música do culto. No entanto, alguns autores levam esse princípio ao extremo:
“música sacra é música erudita, (...) a música cristã deve tender para as músicas dos períodos clássico e romântico”. "A herança da Igreja em sua Música Sacra é a do protestantismo – formas musicais dentro do gênero erudito. É Música Sacra da cultura européia, da civilização ocidental. Os elementos rítmicos que deitam suas raízes no poluente paganismo africano, embora básicos para a música popular, são estranhos à nossa Música Sacra; as escalas e ritmos indígenas nada têm a oferecer à Música Sacra cristã." [1]
Além disso, há a tendência de ter uma visão nostálgica e pessimista dos compositores cristãos: eles só pioram a cada geração, na visão saudosista.
"Devemos dar preferência e usar os grandes hinos da tradição cristã e os cânticos cheios de significado dos grandes mestres do passado e do presente. Consideramos que a música, como arte tem sido degradada e muitas composições contemporâneas carecem de valor. Nas últimas décadas tem surgido, dentro do campo da música sacra, cânticos de escasso valor religioso e musical, e com grande semelhança a própria música popular do mundo." [2]
Deixo as duas citações acima para a análise crítica do leitor.
Popular ou erudito: quem tem maior aproveitamento no culto
O argumento de que a música da igreja deveria igualar-se à melhor música que a humanidade pode produzir (música erudita) é discutível. Poderíamos começar discutindo o conceito de “melhor”. Mas suponhamos que o erudito seja mesmo o “melhor”, hoje em dia, os únicos lugares onde se podem ouvir essas músicas são as salas de concerto, raramente igrejas. Se as músicas sacras dos grandes compositores históricos fossem tomadas como referência única da música cristã, a congregação estaria sendo novamente excluída do louvor musical pela complexidade harmônica e melódica e pela longa duração que as caracteriza. Além do mais, não podemos esquecer que a música cristã não tem apenas objetivo lúdico, é mais uma arte a ser usada do que meramente apreciada.
Historicamente, a música sacra foi durante séculos o sinônimo de boa música erudita porque a igreja cristã controlava e influenciava todas as coisas, inclusive as artes. Mas será que tudo o que ocorreu na Idade Média foi tão bom assim para se tornar parâmetro? Vejamos: a maioria das reuniões religiosas eram feitas em “línguas estranhas” ao povo (o latim principalmente), a Ceia foi gradualmente restrita ao clero e a participação congregacional no louvor era inexistente. Naturalmente, as músicas eram feitas sob medida para essa liturgia estritamente sacerdotal.
Ainda bem que ninguém leva a sério as recomendações saudosistas sobre música sacra, pois do contrário não nos restariam mais que uma dúzia de músicas para cantar com a congregação. O grau de aproveitamento das músicas “eruditas” no louvor congregacional é baixo, qualquer pesquisa de opinião comprovaria que o povo geralmente pefere músicas no estilo contemporâneo popular (ainda que sejam do início do século 20!).
É uma tendência comum afirmar que Johann Sebastian Bach (1685-1750) é o compositor cristão ideal. Mas, do extraordinário material sacro que ele escreveu, pouca coisa restou nos atuais hinários congregacionais, pois suas melodias não são simples para o adorador “comum”. As músicas sacras de Bach não são utilizáveis na maioria das igrejas adventistas, e sim em salas de concerto. Bach escreveu cerca de trezentas cantatas, mas quantos hinos de Bach são encontrados em nossos hinários evangélicos? Os poucos que persistem, sofreram algum tipo de adaptação. Isso é compreensível pelo simples fato de que essas músicas foram escritas para coros litúrgicos profissionais e não para leigos. A maioria dos corais de igreja têm dificuldades até mesmo de executar razoavelmente as populares (sim, são pop!) obras de John Peterson e Don Wyrtzen.
Não dá para reviver, aqui no Brasil, o que ocorreu na Alemanha no século 16, ou na Europa no século 19, e nem mesmo o que ocorria no sul dos EUA no século 20. Por isso, a adoração não deve ser monopolizada pela música “imortal” dos grandes mestres compositores europeus, pelos spirituals dos negros americanos, ou por qualquer estilo que seja.
Lex orandi, lex credendi: a música no culto deve ser o mais congregacional possível, não deve ser exclusiva, pois o culto é congregacional e inclusivo.
E o gosto do povo, importa ou não?
O antropomorfismo (dar a Deus características inerentes ao ser humano) leva-nos a supervalorizar a intelectualidade e a sofisticação, pois achamos que o que nos impressiona também impressiona a Deus. Mas também pode levar-nos à negligência e ao rebaixamento de padrões, pois julgamos que se algo não nos afeta, também não afetará a Deus. No entanto, julgar se Deus vai ou não gostar de uma determinada música de acordo com as flutuantes reações humanas certamente vai gerar discórdia.
“Mas não importa saber o se o povo gosta, o importante é saber se Deus gosta!”, alguém deve estar pensando. Mas o culto deve proporcionar prazer e bem-estar ao adorador, isso é explícito no princípio da “alegria” que caracterizava a adoração tanto do Antigo como do Novo Testamento (Elias podia muito bem profetizar sem música em II Rs.3:15 e 16). Alguém já se perguntou se Deus gosta de carpetes, bancos estofados, ar-condicionado ou sermões em português? A quem essas coisas beneficiam? A Deus? Quando uma igreja vai escolher a cor das paredes, se importa apenas com o gosto de Deus, ou leva em conta a opinião dos adoradores?
A música, de acordo com o princípio neo-testamentário, é mais um instrumento da verdadeira adoração que flui do coração, e deve proporcionar um ambiente agradável de adoração para que as pessoas sejam edificadas. O sacrifício de louvor que devemos oferecer não é o sofrimento causado pelo desgosto estético: o gosto das pessoas tem sim o seu valor.
Lex orandi, lex credendi: o culto deve ser alegre e edificante, e não um sofrimento. Portanto, a música do culto não deve causar desgosto na congregação, por ser estranha, ruidosa, difícil ou por tornar o culto um funeral.
_______________________
[1] Dario Pires Araújo, "Música, adventismo e eternidade", 58-60.
[2] Documento sobre música da Associação Paulista Oeste da IASD (http://www.musicaeadoracao.com.br/documentos/musica_apo.htm)
Lex orandi, lex credendi
Música de culto é funcional, é para ser feita com propósitos que estejam de acordo com os propósitos do culto. O culto e seus propósitos moldam a música. Um antigo axioma litúrgico do cristianismo é “Lex orandi, Lex credendi”: a crença molda a oração, o que cremos é o que molda o culto, a teologia molda a liturgia. Assim, o culto, como expressão coletiva do que cremos, sujeita e normatiza a música, e não o contrário.
Esse axioma desfaz a noção de que o culto é um concerto, um evento onde podemos ter, ao mesmo tempo, comunhão com Deus e algum entretenimento cultural. Devemos ter entretenimento cultural como objetivo de alguns eventos cristãos. Não no culto. Em nossa teologia, culto é adoração a Deus, exposição da Palavra e comunhão uns com os outros, não uma reunião para apreciar música.
Creio que a maioria das pessoas concorda com isso. E no imaginário adventista, esse discurso está direcionado à música contemporânea, estranha, agitada, inadequada ao culto. Normalmente quando ouvimos alguém falar que “a igreja não é um teatro”, o público-alvo da repreensão são os grupos de jovens e suas bandas ruidosas. Ninguém pensa em nada mais.
Ninguém faz discursos assim pensando em oratórios em latim e alemão, cantatas intermináveis apresentadas anualmente em igrejas adventistas durante o culto, acompanhadas por orquestras municipais compostas por pessoas que mal sabem encontrar o livro do Gênesis na Bíblia.
Falta-nos uma certa coerência.
A minha conclusão é: o “erudito” perdoa uma multidão de pecados.
Se é erudito (ou se parece ser erudito), se foi composto por alguém que nasceu antes do século 19, é bem-vindo. Podemos até mesmo inverter: “Lex credendi, lex orandi”, e transformar o culto cristão numa missa incompreensível para boa parte da congregação sob o pretexto de apreciar boa música sacra.
Lex orandi, lex credendi: o culto não é um espetáculo musical, seja de música popular ou erudita. A igreja pode se reunir para apreciar música em outros momentos que não o culto.
Oferecer a Deus o melhor é oferecer a Deus música erudita ocidental
Todos concordam que o Senhor merece o melhor que podemos oferecer, e aplicamos esse princípio à música do culto. No entanto, alguns autores levam esse princípio ao extremo:
“música sacra é música erudita, (...) a música cristã deve tender para as músicas dos períodos clássico e romântico”. "A herança da Igreja em sua Música Sacra é a do protestantismo – formas musicais dentro do gênero erudito. É Música Sacra da cultura européia, da civilização ocidental. Os elementos rítmicos que deitam suas raízes no poluente paganismo africano, embora básicos para a música popular, são estranhos à nossa Música Sacra; as escalas e ritmos indígenas nada têm a oferecer à Música Sacra cristã." [1]
Além disso, há a tendência de ter uma visão nostálgica e pessimista dos compositores cristãos: eles só pioram a cada geração, na visão saudosista.
"Devemos dar preferência e usar os grandes hinos da tradição cristã e os cânticos cheios de significado dos grandes mestres do passado e do presente. Consideramos que a música, como arte tem sido degradada e muitas composições contemporâneas carecem de valor. Nas últimas décadas tem surgido, dentro do campo da música sacra, cânticos de escasso valor religioso e musical, e com grande semelhança a própria música popular do mundo." [2]
Deixo as duas citações acima para a análise crítica do leitor.
Popular ou erudito: quem tem maior aproveitamento no culto
O argumento de que a música da igreja deveria igualar-se à melhor música que a humanidade pode produzir (música erudita) é discutível. Poderíamos começar discutindo o conceito de “melhor”. Mas suponhamos que o erudito seja mesmo o “melhor”, hoje em dia, os únicos lugares onde se podem ouvir essas músicas são as salas de concerto, raramente igrejas. Se as músicas sacras dos grandes compositores históricos fossem tomadas como referência única da música cristã, a congregação estaria sendo novamente excluída do louvor musical pela complexidade harmônica e melódica e pela longa duração que as caracteriza. Além do mais, não podemos esquecer que a música cristã não tem apenas objetivo lúdico, é mais uma arte a ser usada do que meramente apreciada.
Historicamente, a música sacra foi durante séculos o sinônimo de boa música erudita porque a igreja cristã controlava e influenciava todas as coisas, inclusive as artes. Mas será que tudo o que ocorreu na Idade Média foi tão bom assim para se tornar parâmetro? Vejamos: a maioria das reuniões religiosas eram feitas em “línguas estranhas” ao povo (o latim principalmente), a Ceia foi gradualmente restrita ao clero e a participação congregacional no louvor era inexistente. Naturalmente, as músicas eram feitas sob medida para essa liturgia estritamente sacerdotal.
Ainda bem que ninguém leva a sério as recomendações saudosistas sobre música sacra, pois do contrário não nos restariam mais que uma dúzia de músicas para cantar com a congregação. O grau de aproveitamento das músicas “eruditas” no louvor congregacional é baixo, qualquer pesquisa de opinião comprovaria que o povo geralmente pefere músicas no estilo contemporâneo popular (ainda que sejam do início do século 20!).
É uma tendência comum afirmar que Johann Sebastian Bach (1685-1750) é o compositor cristão ideal. Mas, do extraordinário material sacro que ele escreveu, pouca coisa restou nos atuais hinários congregacionais, pois suas melodias não são simples para o adorador “comum”. As músicas sacras de Bach não são utilizáveis na maioria das igrejas adventistas, e sim em salas de concerto. Bach escreveu cerca de trezentas cantatas, mas quantos hinos de Bach são encontrados em nossos hinários evangélicos? Os poucos que persistem, sofreram algum tipo de adaptação. Isso é compreensível pelo simples fato de que essas músicas foram escritas para coros litúrgicos profissionais e não para leigos. A maioria dos corais de igreja têm dificuldades até mesmo de executar razoavelmente as populares (sim, são pop!) obras de John Peterson e Don Wyrtzen.
Não dá para reviver, aqui no Brasil, o que ocorreu na Alemanha no século 16, ou na Europa no século 19, e nem mesmo o que ocorria no sul dos EUA no século 20. Por isso, a adoração não deve ser monopolizada pela música “imortal” dos grandes mestres compositores europeus, pelos spirituals dos negros americanos, ou por qualquer estilo que seja.
Lex orandi, lex credendi: a música no culto deve ser o mais congregacional possível, não deve ser exclusiva, pois o culto é congregacional e inclusivo.
E o gosto do povo, importa ou não?
O antropomorfismo (dar a Deus características inerentes ao ser humano) leva-nos a supervalorizar a intelectualidade e a sofisticação, pois achamos que o que nos impressiona também impressiona a Deus. Mas também pode levar-nos à negligência e ao rebaixamento de padrões, pois julgamos que se algo não nos afeta, também não afetará a Deus. No entanto, julgar se Deus vai ou não gostar de uma determinada música de acordo com as flutuantes reações humanas certamente vai gerar discórdia.
“Mas não importa saber o se o povo gosta, o importante é saber se Deus gosta!”, alguém deve estar pensando. Mas o culto deve proporcionar prazer e bem-estar ao adorador, isso é explícito no princípio da “alegria” que caracterizava a adoração tanto do Antigo como do Novo Testamento (Elias podia muito bem profetizar sem música em II Rs.3:15 e 16). Alguém já se perguntou se Deus gosta de carpetes, bancos estofados, ar-condicionado ou sermões em português? A quem essas coisas beneficiam? A Deus? Quando uma igreja vai escolher a cor das paredes, se importa apenas com o gosto de Deus, ou leva em conta a opinião dos adoradores?
A música, de acordo com o princípio neo-testamentário, é mais um instrumento da verdadeira adoração que flui do coração, e deve proporcionar um ambiente agradável de adoração para que as pessoas sejam edificadas. O sacrifício de louvor que devemos oferecer não é o sofrimento causado pelo desgosto estético: o gosto das pessoas tem sim o seu valor.
Lex orandi, lex credendi: o culto deve ser alegre e edificante, e não um sofrimento. Portanto, a música do culto não deve causar desgosto na congregação, por ser estranha, ruidosa, difícil ou por tornar o culto um funeral.
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[1] Dario Pires Araújo, "Música, adventismo e eternidade", 58-60.
[2] Documento sobre música da Associação Paulista Oeste da IASD (http://www.musicaeadoracao.com.br/documentos/musica_apo.htm)
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